A produção dos sujeitos afro-brasileiros está dentro, pois, da literatura brasileira por se apropriar da mesma língua e dos muitos gêneros que fazem parte dos seus procedimentos. Ao mesmo tempo, essa literatura apresenta-se como estrangeira, mesmo no próprio território, por abarcar experiências não privilegiadas pela literatura consagrada.
Seja denominada literatura negra ou afro-brasileira, Octávio Ianni aborda que essa tessitura é “um sistema de obras, autores e leitores articulados em torno de uma problemática, um imaginário povoado de construções, imagens, figuras ressoando o drama épico do negro brasileiro” (IANNI, 1988, p. 91) e defende a literatura escrita por afro-brasileiros como “Um imaginário que se articula aqui e ali, conforme o diálogo de autores, obras, temas, invenções literárias. É um movimento, um devir, no sentido de que se forma e transforma. Aos poucos, por dentro e por fora da literatura brasileira, surge a literatura negra, como um todo com perfil próprio, um sistema significativo (IANNI, 1988, p. 91).
As palavras de Ianni dialogam com o exposto por Cuti, pois a literatura afro- brasileira rasura os cânones em movimentos de transformação e de novos significados à escrita poética. No entanto, Cuti defende a substituição do termo “afro” por “negro”, pois para ele a palavra “negro” traz a memória de todos aqueles que resistiram e lutaram pela sua identidade e liberdade. Já o termo “afro” faz alusão ao continente africano e diz “é projetá-la à origem continental de seus autores, deixando-a à margem da literatura brasileira” (Cuti, 2010, p. 35). Paralelo ao exposto por Cuti, as escritoras Florentina Souza e Nazaré Lima (2002) também conclamam dos mesmos ideários, pois para elas, a expressão “negro-brasileira” traz em seu bojo a luta dos povos desfavorecidos. Elas fomentam que a “literatura afro-brasileira” procura assumir as ligações entre o ato criativo que o termo “literatura” indica e a relação dessa criação com a África, seja aquela que nos legou a imensidão de escravos trazida para as Américas, seja a África venerada como berço da civilização” e acrescentam que “a expressão “literatura afrodescendente” parece se orientar num duplo movimento: insiste na constituição de uma visão vinculada às matrizes culturais africanas e, ao mesmo tempo, procura traduzir as mutações inevitáveis que essas heranças sofreram na diáspora. (SOUZA; LIMA, 2002, p. 24).
No exposto pelas autoras, percebe-se um outro termo em referência à literatura afro-brasileira: afrodescendente. O termo, segundo elas, também se distancia do sentido ao termo “negro’, entretanto, neste trabalho, a literatura apresentada abarca todos os sentidos apresentados pelos autores supracitados, mas por querer se aproximar mais da Lei 10.639/03, é denominada de afro-brasileira, termo proposto na Lei.
Ainda sobre o termo afro-brasileiro, Duarte ponta que “por sua própria configuração semântica, remete ao tenso processo de mescla cultural em curso no Brasil desde a chegada dos primeiros africanos. Processo de hibridação étnica e
linguística, religiosa e cultural” (DUARTE, 2014, p. 381). Nesse viés literário, o autor ainda envolve “as várias tendências existentes na demarcação discursiva do campo identitário afrodescendente em sua expressão literária” (DUARTE, 2014, p. 384), nesse sentido, o que está em voga é a importância do lugar do sujeito da enunciação, ou seja, o escritor.
Na nossa contemporaneidade, a crítica literária brasileira debruça-se no campo das pesquisas e utiliza também outras terminologias, como literatura negra, literatura afrodescendente ou literatura negro-brasileira.
Ademais, a literatura afro-brasileira, além de ser um projeto de enfrentamento e resistências aos discursos universalizantes de construção do objeto literário, é a forma pela qual sujeitos negros/afro-brasileiros produzem o objeto artístico utilizando-se temas diversos, sua própria subjetividade e experiências na sociedade brasileira. Portanto, ressignificar termos tem sido um trabalho realizado há décadas por escritores e teóricos que lutam a favor do reconhecimento da literatura afro-brasileira, atravessando ideias e concepções cristalizadas e estabelecidas no campo literário brasileiro. O texto é, entretanto, um espaço de reivindicação constante. O poema Eu sou sobrevivência20 (2020) da poeta baiana Bethe Bastos marca esse lugar:
Sou mulher, Sou negra, Sou filha, Sou irmã, Sou mãe,
Sou professora! Vários papéis, Uma identidade!
Marcas de lutas e resistências! Obediências,
Silêncios,
Eis um novo tempo! Novas vozes, “Novos” corpos Novos lugares.
Urgências!
É liberdade do grito, Empoderamento,
SobreVIVÊNCIA! (BASTOS, 2020, p. 84)
20 Poema publicado nos Cadernos Negros 43 pela poeta de Feira de Santana, Bahia.
O poema da poeta traz de forma marcante essas vozes que acompanham o eu poético da escrita afro. Marcar seu lugar na sociedade, reconhecer-se quanto sujeitos sociais e desvendar suas particularidades é o que propõem essa escrita. Além disso, Bastos ainda empresta sua voz a outras mulheres para que todas sintam o peso significativo de ocupar o lugar desejado na sociedade. Percebe-se, então, o esforço de tornar audíveis essas vozes numa mescla de luta e afetividade pelo corpo-território do eu poético afro-brasileiro. Assim, configura-se a literatura afro-brasileira: de protesto, de representatividade, de reinvindicação social, cultural e histórica além dos rompimentos dos estereótipos ainda cristalizados em nosso tempo.
REFERÊNCIAS:
BASTOS, Bethe. Cadernos Negros 43. São Paulo: Quilombhoje, 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
CUTI [Luz Silva]. Literatura Negro-Brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. 4 v.
IANNI, Octavio. Raças e classes sociais no Brasil. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 45-133.
SOUZA, Florentina. Literatura afro-brasileira: algumas reflexões. In: Revista Palmares: cultura afro-brasileira. Ano 1. n° 2. Dezembro, 2005. p. 64-72.
SOUZA,EneidaMariade. CríticaCult.BeloHorizonte:EditoraUFMG,2002.
Autoria: Cláudia Gomes
A articulista, Cláudia Gomes, é mãe de três filhos e ama animais. Natural de Salvador, BA, radicada em Feira de Santana. Doutora em Educação. Mestra em Letras pela UNEB. Graduada em Letras Vernáculas (UEFS). Especialista em Língua Portuguesa: Gramática (UEFS) e Gestão Escolar pela UFBA. É professora da rede municipal de FSA e do Estado da Bahia, poeta, contista e escritora. Ocupa a Cadeira 2 e é vice-presidente da Academia Metropolitana de Letras e Artes de Feira de Santana e é titular da cadeira 36 da Academia de Letras e Artes de Feira de Santana. Ocupa a cadeira 54 da Academia Independente de Letras (PE), a 539 da Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil e a 139 da Academia Internacional de Literatura. Participa da ABAI assumindo a Cadeira 38. Participa do grupo Mulherio das Letras (Brasil/Portugal) e do Grupo Confralib.
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