De repente, um silêncio ensurdecedor. Uma ausência de sons explicável, ainda não aceita em minha existência. A casa vazia, bem ao lado direito da minha, expõe sua varanda agora vazia, sem as coisas que nela ficavam expostas em busca de compradores: caçarolas, estantes, mesas, bicicleta motorizada e muitos outros objetos que se alternavam de tempos em tempos como em um brechó rotativo. O sofá, elemento principal daquele cenário, era de uso pessoal do dono da casa, que ali passava os seus dias, em busca de companhia. Por dias permanecera ali também vazio, uma demonstração real da solidão que a casa inteira sentia. Após duas semanas, o sofá também foi retirado, pois já não havia quem o pudesse utilizar.
As pessoas aos poucos foram sabendo do acontecido e, mesmo dentro de minha casa, eu ouvia os lamentos de quem ali parava já saudosos e tristes pelo seu passamento. Antes, o cumprimentavam ou paravam um pouco para uma conversa informal, seja sobre a pandemia, sobre o preço do combustível, da carne ou da cerveja que ele sempre gostou de tomar ou ainda sobre a dose diária de cachaça que parecia lhe fazer bem ao longo dos seus mais de oitenta anos, embora eu nunca o tivesse visto degustando uma dose sequer.
Há alguns anos, uns cinco talvez, ele perdera a esposa que se encontrava enferma e, não tendo filhos, permanecera sozinho, mas rodeado de amigos que se juntavam à frente de sua casa e que, além de uma conversa amigável ou lhe prestando alguns favores, deram-lhe alguns apelidos carinhosos, aos quais ele atendia prontamente: Cudo, Berico, Sô Berico, entre outros. Ninguém o chamava pelo seu nome de batismo.
Ele, aposentado há muitos anos, gostava de fazer favores para seus vizinhos: recebia encomendas dos Correios ou de outros entregadores; informava a localização de ruas e de casas, quando lhe pediam essas informações. Generoso, distribuía frutas que davam em seu pequeno pomar ou que recebia do pomar de seus parentes: manga, abacate, acerola etc. Gesto que eu procurava retribuir com algumas quitandas ou quando fazíamos um churrasco.
Sua vida social parecia ser mais intensa do que a minha, pois, por um longo período, raramente eu saía de casa, a não ser para colocar o lixo para fora a ser recolhido pelos servidores contratados pela Prefeitura Municipal três vezes por semana. De dentro de minha casa, usufruía do som do seu rádio, ouvindo as notícias mais recentes, ao avisos e, com ele rezava silenciosamente, acompanhando as orações e as missas transmitidas diariamente e em dias especiais dedicados aos padroeiros das inúmeras paróquias da cidade.
Em dias de procissões, cavalgadas, corridas ou outros eventos que passavam por nossa avenida, ficávamos do lado de fora aguardando a passagem. Sua casa, assim como a minha e de outros vizinhos eram enfeitadas para as procissões, e eu sempre colocava algum enfeite na grade de sua varanda.
Conversávamos pouco, pois eu não era muito de ficar na rua, mas tínhamos uma vida aparentemente normal para duas pessoas aposentadas e vizinhas.
Tudo parecia não fugir à rotina até que, em uma tarde de sexta-feira, ele cai desfalecido em sua cozinha. Apenas sua cadela “Boneca” lhe fez companhia em sua hora derradeira. Somente ela presenciou o seu último suspiro e o viu cair no chão frio, no qual permaneceu por alguns minutos até que uma vizinha o viu da rua, pois a porta da sala sempre permanecia aberta durante o dia.
Ele estava morto! O olhar da cadela demonstrava uma tristeza profunda e ela ali permanecera diante dele, apenas separada pelo portão que não permitia o contato com ele. Após a retirada do seu corpo pelos agentes funerários, Boneca se deitou perto da porta cozinha, agora fechada, e ali permanecera pelos dois dias seguintes, até ser adotada por uma vizinha. Nesses dois dias, eu fui até o terraço e de lá a chamava pelo nome. Ela apenas olhava para cima, me via, e abanava um pouco o rabo, sem se mover. Não mais fazia festa como das outras vezes em que eu e minha filha a chamavam.
Eu, que não sou adepta à “filosofia da boa vizinhança” devida às intrigas, não jamais pensara que sentiria tanto a sua falta. Não havia pensado que a sua ausência me causaria lembranças e me faria sentir falta de tantas coisas. O rádio ligado na rádio pioneira de nossa cidade, a entrega de minhas encomendas, o seu chamado no muro oferecendo-me alguma fruta e nossas saídas, espontâneas e não combinadas, de nossas casas, para vermos passar procissões, cavalgadas, corridas a pé e de bicicleta e outros atrativos que ali aconteciam. Até mesmo da sua tosse eu sinto falta, pois era a certeza de que ele estava ali e havia se levantado.
Apenas uma vez, ele me pediu um favor, que prontamente eu o fiz. Ao retornar de minha última viagem antes de seu passamento, comprei-lhe uma camisa, pois, devido ao demorado tempo de minha viagem, sabia que ele havia guardado para mim algumas encomendas.
Minha rotina mudou de uma forma tão inesperada quanto fora a sua morte, pois eu não mais precisava cantar ou fingir estar ao celular com minha filha, ao estender roupas lavadas, com o único objetivo de me fazer presença para ele também. Queria que ele se sentisse acompanhado e que percebesse minha presença, ao mesmo tempo que eu procurava demonstrar que eu também estava bem.
Toda o burburinho e todas as conversas mais acaloradas, inflamadas por diferenças de opiniões ou por situações mais alegres, se dissiparam. Atualmente, reina um silêncio jamais imaginado. As pessoas não mais param diante de sua casa, apenas olham ainda para a varanda vazia. Ninguém mais se acomoda na calçada em frente a sua ex-moradia. A rua aquietou-se bruscamente. Quase não se vê mais ninguém.
Hoje, a casa está a venda. Apenas a Cruz enfeitada ainda persiste pendurada em um prego na porta de entrada: demonstração de sua presença e de sua fé. Ali permanecerá até que um novo morador a retire de lá e tudo que é material se apague e apenas as lembranças e a saudade permanecerão.
Fomos vizinhos por 41 anos!…
Autoria: Terê Silva
Biografia
A escritora e poeta Terê Silva – Terezinha de Jesus da Silva – nasceu e reside em São João del-Rei-MG. Atualmente, exerce a função de suplente do Conselho Fiscal do Instituto Histórico e Geográfico e, pela segunda vez, a função de Primeira Secretária da Academia de Letras, instituições de São João del-Rei. É ta Acadêmica Efetiva da AILAP – Academia Internacional de Letras Poetas Além do Tempo, ocupando a Cadeira Nº 97, cuja Patrona é, por sua indicação e escolha, Bárbara Eliodora Guilhermina da Silveira e Sócia Correspondente da Academia Praisense de Cultura (Letras, Artes, Música), de São Sebastião do Paraíso/MG.. Formada em Letras (UFSJ), pós-graduada em Metologia do Ensino de Ciências – Informática Educativa (UFMG), e formada em Biblioterapia pelo Observatório do Livro e da Leitura (Ribeirão Preto/SP). É aposentada como professora e servidora da Superintendência Regional de Ensino – SRE. Ministrou cursos em diversas cidades de Minas Gerais e do país; coordenou inúmeros projetos e eventos relacionados à educação. Durante muitos anos, coordenou o Núcleo de Tecnologia Educacional – NTE MG-17, na SRE. Escrever é a sua transcendência do real e imanência nele, seu encontro mais íntimo com as manifestações em sua vida. Escreve diariamente nem que seja apenas um verso, uma estrofe, um parágrafo.
Premiações:
Ganhou seu primeiro prêmio em 1967, com uma redação sobre Duque de Caxias – Patrono do Exército Brasileiro, no antigo 4º ano primário, na atual EE. “Tomé Portes del-Rei”; 1º lugar nos concursos promovidos pelas Rádios São João del-Rei e Emboabas: “Cajamar” e “Eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir”, respectivamente. Premiada em 2º lugar no concurso promovido pela ATLAS – Academia Tobiense de Letras, de Tobias Barreto/SE, com seu cordel Desengano (2020).
Obras publicadas:
Poesia: Momentos (2004); Transcendência (2005); Véspera (2005); Voo: para onde o coração me levar (2019); As mulheres em mim (2020); Mundo feliz (infantil) (2022).
Em prosa e verso: O espelho do silêncio (2020).
Em 2020, foi selecionada para mais de vinte antologias, de diversas editoras do país e UFRR, por meio de concursos literários, com seus poemas, contos e cordel e em outras mais em 2021 e 2022. Atualmente, está escrevendo seu primeiro livro de crônicas.
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