Se a Literatura Afro-brasileira pode ser vista como algo que ainda se encontra em processo de construção, afigurando-se como um verdadeiro “devir”, quem está por trás dessa escrita? Que vozes estão sendo reveladas? Que personagens dialogam com os leitores? Esses e outros questionamentos estão imersos nos diversos pensamentos dos pesquisadores que analisam esse tema nos livros didáticos.
A presença da Literatura Afro-brasileira nos livros didáticos data de tempos relativamente recentes. Uma presença ainda muito incipiente, diga-se em tempo. Não havendo de forma efetiva referências à cultura africana e à afro-brasileira, ou mesmo à vida dos afro-brasileiros e suas vozes. Quando a temática aparece, favorece, geralmente, aspectos como comiseração, miséria, doença, escravidão. Esses livros didáticos, em sua maioria, não oportunizam aos educandos a valorização da diversidade cultural e a formação da própria identidade, nem lhes apresentam outras vozes retratadas por uma escrita que sugere aproximação dos sujeitos com as leituras. As culturas são mestiças e híbridas – conforme já nos mostrou mais de um crítico da cultura –, o que coloca em evidência a necessidade de rever conceitos questionáveis, como homogeneização cultural, e de predomínio de um modo específico de perceber o mundo e de lidar com a realidade sobrepondo-se a todos os outros.
Literatura é expressão dos traços constitutivos de uma nacionalidade, mas não implica numa uniformização de pensamento e de visões de mundo. Um Estado-nação abarca, dentro de suas fronteiras, a diversidade regional que se expressa por meio de universos simbólicos autônomos e de práticas discursivas que definem uma identidade. Desse modo, podemos ser todos brasileiros, no sentido de pertencimento a um grupo nacional com o qual partilhamos uma série de elementos identitários, todavia inúmeras dessemelhanças nos particularizam e nos tornam mais próximos de grupos menores, mais coesos e homogêneos, com os quais mantemos laços de identificação mais estreita.
Diante da constatação da diversidade cultural dentro das fronteiras de um mesmo Estado, cabem pelo menos duas indagações: Por que as personagens das literaturas africanas e da afro-brasileira ainda não ganharam espaço de destaque nas salas de aula? E por que a literatura brasileira não contempla a voz daqueles que tanto contribuíram para a construção da identidade nacional? Sobre isso, Silva (2008, p. 4) aponta que “Para falarmos de Literatura afro-brasileira, de suas articulações de sentido com a Literatura brasileira, da maneira como alguns conceitos e determinadas leituras foram ressignificadas neste universo de construções e desconstruções da imagem do afro-brasileiro na sociedade contemporânea, é necessário nomearmos as produções culturais e literárias que buscaram na própria polêmica sobre a existência de uma Literatura negra dar visibilidade cultural e política a uma comunidade, até então, supostamente representada por alguns discursos legitimados socialmente”.
O discurso legitimado pela cultura branca era o discurso da exclusão, pois marginalizava toda e qualquer manifestação cultural e artística que pudesse resgatar a memória e a história dos afro-brasileiros. Cultura é identidade e, por isso, uma forma de afirmação no mundo. Desconhecer o passado, ignorar os processos históricos responsáveis pela formação das instituições sob a autoridade das quais se vive é amputar o desenvolvimento integral da consciência; é tornar o homem alheio de si mesmo, um alienado infeliz e incapaz de análises críticas. Não permitir a presença de tradições culturais afro-brasileiras nos livros didáticos é contribuir decisivamente para o aprofundamento de um longo processo de desvalorização de um dos grupos mais historicamente marginalizados da sociedade brasileira, condenando-os a um modo de existência marcado pela exclusão social.
Neste sentido, romper com as ideologias do passado e lutar pela conquista do espaço no campo literário foram o que fizeram os escritores do Jornal do Movimento Negro Unificado (JMNU) e dos Cadernos Negros (CN). O Jornal do MNU traz um conjunto de textos voltados para a discussão do papel do negro nas instâncias sociais e políticas; já os Cadernos Negros começaram a ser publicados em São Paulo, no ano de 1978, com a participação de escritores afro-brasileiros de todos os lugares do Brasil.
Sendo uma edição anual, os Cadernos Negros publicam poemas nos volumes ímpares e contos nos pares. O primeiro volume foi em formato de “brochura de bolso”, tinha somente 52 páginas com tiragem de apenas mil exemplares. No ano de 1994, o Grupo Quilombhoje passa a se responsabilizar pela edição dos CN que são “depoimentos criativos de uma geração de escritores que reivindica um espaço para a voz negra na vida cultural e literária brasileira” (SOUZA, 2005, p. 113). Desde então, houve uma desestabilidade dos estereótipos negativos criados ao longo do tempo sobre os afrodescendentes. Assim, as vozes das personagens que representam todo esse massacre literário de silenciamento são percebidas no poema Outras Notícias, de Semog (1998, p. 58), e nos dizem:
Não vou às rimas como esses poetas
Que salivam por qualquer coisa.
Rimar Ipanema com morena
É moleza,
Quero ver combinar prosaicamente
Flor do campo com Vigário Geral,
Ternura com Carandiru,
Ou menina carinhosa/trem de Japeri.
Não sou desses poetas
Que se arribam, se arrumam em coquetéis
E se esquecem do seu povo lá fora. (CN, 20)
Semog, escritor dos CN, participou do surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU) nos fins dos anos 1970. Ao escrever Outras Notícias, revela-nos as tantas vozes que imbricam o seu discurso, apoiadas em personagem questionador e revelador das atrocidades que acometem o seu tempo. Se notícias sobre Vigário Geral ou mesmo sobre Carandiru já não são mais discutidas na sociedade, se foram silenciadas por um sistema de opressão, as personagens da Literatura Afro-brasileira as retomam, utilizando-se de uma linguagem polissêmica e politizada. Para essas personagens, a escrita nunca será ato isolado, pois, ao revelar aspectos do cotidiano, envolve a coletividade, a inter-relação com outras vozes, com outras vidas.
No entanto, as personagens negras com voz autoral[1], com identidade reconhecida, sabedoras dos direitos e dos deveres, da liberdade de ir e vir, ainda são poucas na nossa literatura. Dalcastagnè (2008, p. 87), ao escrever um artigo baseado em uma pesquisa sobre as relações raciais na literatura, revela que “são poucos os autores negros e poucas, também, as personagens – uma ampla pesquisa com romances das principais editoras do País publicados nos últimos 15 anos identificou quase 80% de personagens brancas, proporção que aumenta quando se isolam protagonistas ou narradores” e acrescenta: “Isto sugere uma outra ausência, desta vez temática, em nossa Literatura: o racismo. Se é possível encontrar, aqui e ali, a reprodução paródica do discurso racista, com intenção crítica, ficam de fora a opressão cotidiana das populações negras e as barreiras que a discriminação impõe às suas trajetórias de vida”.
Diante das palavras de Dalcastagnè (2008), observo que as personagens negras não ocupam o mesmo lugar das personagens brancas. Neste sentido, as vozes dos autores afro-brasileiros ganham mais força, pois almejam tanto o reconhecimento de uma escrita literária de representatividade como a emancipação do sujeito que reflete seu papel na sociedade.
Assim, a literatura afro-brasileira, queridos leitores e leitoras, precisa ser descortinada, lida, sentida, valorizada... Ela está e sempre esteve no meio de nós!
Referências:
CADERNOS NEGROS: os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998.
DALCASTAGNÈ, Regina. Entre silêncios e estereótipos: relações raciais na literatura brasileira contemporânea. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 31. Brasília, janeiro-junho de 2008, pp. 87-110.
SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
SILVA, Vinicius Baptista da. Racismo em livros didáticos: estudo sobre negros e brancos em livros de Língua Portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
[1]Nesse texto, o sentido de voz autoral volta-se para a descoberta do autor de sua própria subjetividade.
Autoria: Cláudia Gomes
A articulista, Cláudia Gomes, é mãe de três filhos e ama animais. Natural de Salvador, BA, radicada em Feira de Santana. Doutora em Educação. Mestra em Letras pela UNEB. Graduada em Letras Vernáculas (UEFS). Especialista em Língua Portuguesa: Gramática (UEFS) e Gestão Escolar pela UFBA. É professora da rede municipal de FSA e do Estado da Bahia, poeta, contista e escritora. Ocupa a Cadeira 2 e é vice-presidente da Academia Metropolitana de Letras e Artes de Feira de Santana e é titular da cadeira 36 da Academia de Letras e Artes de Feira de Santana. Ocupa a cadeira 54 da Academia Independente de Letras (PE), a 539 da Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil e a 139 da Academia Internacional de Literatura. Participa da ABAI assumindo a Cadeira 38. Participa do grupo Mulherio das Letras (Brasil/Portugal) e do Grupo Confralib.
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